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O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. Diminutos, invisíveis. O mundo é salvo pelo avesso da importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva. Inclui.
História de um olhar
Eliane Brum
Imundo, meio abilolado, malcheiroso, Israel vivia atirado num canto ou noutro da vila. Filho de pai pedreiro e de mãe morta, vivendo em uma casa cheia de fome com a madrasta e uma irmã doente. Desregulado das ideias, segundo o senso comum. Nascido prematuro, mas sem dinheiro para diagnóstico. Escorraçado como um cão, torturado pelos garotos maus. Amarrado, quase violado, Israel era cuspido. Era apedrejado. Israel era a escória da escória.
Um dia Israel se aproximou de um menino. De nove anos, chamado Lucas. Olhos de amêndoa, rosto de esconderijo. Bom de bola. Bom de rua. De tanto gostar do menino que lhe sorriu, Israel o seguiu até a escola. Até a porta onde Lucas desaparecia todas as tardes, tragado sabe-se lá por qual magia. Até a porta onde as crianças recebiam cucas e leite. Israel chegou até lá por fome. De comida, de afago, de lápis de cor. Fome de olhar.
Aconteceu neste inverno. Eliane a professora, descobriu Israel. Desajeitado, envergonhado, quase desaparecido dentro dele mesmo. Um vulto, um espectro na porta da escola. Com um sorriso inocente e uns olhos de vira-lata pidão, dando a cara a cara para bater porque nunca foi capaz de escondê-la. Eliane viu Israel. E Israel se viu refletido no olhar de Eliane. E o que se passou naquele olhar é um milagre de gente. Israel descobriu um outro Israel navegando nas pupilas da professora. Terno, especial, até meio garboso. Israel descobriu nos olhos da professora que era um homem, não um escombro.
Capturado por essa irresistível imagem de si mesmo, Israel perseguiu o olho de espelho da professora. A cada dia dava um passo para dentro do olhar. E, quando perceberam, Israel estava no interior da escola. E, quando viram, Israel estava na janela da sala de aula da 2ª série C. Com meio corpo para dentro do olhar da professora.
Uma cena e tanto. Israel na janela, espiando para dentro. Cantando no lado de fora, desenhando com os olhos. Quando o chamavam, fugia correndo. Escondia-se atrás dos prédios. Mas devagar, como bicho acuado, que de tanto apanhar ficou ressabiado, foi pegando primeiro um lápis, depois um afago. E, num dia de agosto, Israel completou a subversão. Cruzou a porta e pintou bonecos de papel. Israel estava todo dentro do olhar da professora.
E o olhar começou a se espalhar, se expandir, e engolfou toda a sala de aula. A imagem se multiplicou por 31 pares de olhos de crianças. Israel, o pária, tinha se transformado em Israel, o amigo. Ganhou roupas, ganhou pasta, ganhou lápis de cor. E, no dia seguinte, Israel chegou de banho tomado, barba feita, roupa limpa. Igualzinho ao Israel que havia avistado no olho da professora. Trazia até umas pupilas novas, enormes, em forma de facho. E um sorriso também recém-inventado. Entrou na sala onde a professora pintava no chão e ela começou a chorar. E as lágrimas da professora, tal qual um vagalhão, terminaram de lavar a imagem acossada, ferida, flagelada de Israel.
Israel, capturado pelo olhar da professora, nunca mais o abandonou. Vive hoje nesse olhar em formato de sala de aula, cercado por 31 pares de olhos de infância que lhe contam histórias, puxam a mão e lhe ensinam palavras novas. Refletido por esses olhos, Israel passou a refletir todos eles. E a professora, que andava deprimida e de mal com a vida, descobriu-se bela, importante, nos olhos de Israel. E as crianças, que têm na escola um intervalo entre a violência e a fome, descobriram-se livres de todos os destinos traçados nos olhos de Israel.
Israel, não importa se alguém não gosta de você. O que importa é que você siga a vida, aconselha Jeferson, de oito anos. Israel, não faz mal que tu sejas grande e um pouco doente, tu podes fazer tudo o que tu imaginares, promete Greice, de nove. Israel, se alguém te atirar uma pedra eu vou chamar o Vandinho, porque todo mundo tem medo do Vandinho, tranquiliza Lucas, nove. Israel, tu me botas na garupa no recreio?
E foi assim que o olhar escorreu pela escola e amoleceu as ruas de pedra.
Israel, depois que se descobriu no olhar da professora, ganhou o respeito da vila, a admiração do pai. Vai ganhar uma vaga oficial na escola. Já consegue escreveu o "P" de professora. E ninguém mais lhe atira pedras. A professora, depois que se descobriu no olhar de Israel, ri sozinha e chora à toa. Parou de reclamar da vida e as aulas viraram uma cantoria. A redenção de Israel foi a revolução da professora.
Em 7 de Setembro, Israel desfilou. Pintado de verde-amarelo, aplaudido de pé pela Vila Pedra.
Referencia: Eliane Brum em "A vida que ninguém vê". Arquipélago Editorial. Porto Alegre, 2006. 208 p.
Eliane Brum nasceu em Ijuí (RS), em 1966. Como repórter, ganhou mais de 40 prêmios no Brasil e no exterior. É autora dos livros de reportagem Coluna Prestes - O avesso da lenda e O olho da rua, do romance Uma Duas e de A menina quebrada, que reúne suas colunas de opinião. Como documentarista, codirigiu o premiado Uma história severina e Gretchen filme estrada. Trabalhou 11 anos no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e dez na revista Época, em São Paulo. Desde 2010, atua como jornalista freelance, dedicando-se a livros de reportagem e de ficção, documentários e sua coluna de opinião.
"A vida que ninguém vê é o resultado da busca de uma repórter pela notícia que não estava no jornal. Os textos são reportagens pautadas pelo exercício de um olhar atento aos pequenos acontecimentos, ao que se passa na existência das pessoas desconhecidas."
Um dia Israel se aproximou de um menino. De nove anos, chamado Lucas. Olhos de amêndoa, rosto de esconderijo. Bom de bola. Bom de rua. De tanto gostar do menino que lhe sorriu, Israel o seguiu até a escola. Até a porta onde Lucas desaparecia todas as tardes, tragado sabe-se lá por qual magia. Até a porta onde as crianças recebiam cucas e leite. Israel chegou até lá por fome. De comida, de afago, de lápis de cor. Fome de olhar.
Aconteceu neste inverno. Eliane a professora, descobriu Israel. Desajeitado, envergonhado, quase desaparecido dentro dele mesmo. Um vulto, um espectro na porta da escola. Com um sorriso inocente e uns olhos de vira-lata pidão, dando a cara a cara para bater porque nunca foi capaz de escondê-la. Eliane viu Israel. E Israel se viu refletido no olhar de Eliane. E o que se passou naquele olhar é um milagre de gente. Israel descobriu um outro Israel navegando nas pupilas da professora. Terno, especial, até meio garboso. Israel descobriu nos olhos da professora que era um homem, não um escombro.
Capturado por essa irresistível imagem de si mesmo, Israel perseguiu o olho de espelho da professora. A cada dia dava um passo para dentro do olhar. E, quando perceberam, Israel estava no interior da escola. E, quando viram, Israel estava na janela da sala de aula da 2ª série C. Com meio corpo para dentro do olhar da professora.
Uma cena e tanto. Israel na janela, espiando para dentro. Cantando no lado de fora, desenhando com os olhos. Quando o chamavam, fugia correndo. Escondia-se atrás dos prédios. Mas devagar, como bicho acuado, que de tanto apanhar ficou ressabiado, foi pegando primeiro um lápis, depois um afago. E, num dia de agosto, Israel completou a subversão. Cruzou a porta e pintou bonecos de papel. Israel estava todo dentro do olhar da professora.
E o olhar começou a se espalhar, se expandir, e engolfou toda a sala de aula. A imagem se multiplicou por 31 pares de olhos de crianças. Israel, o pária, tinha se transformado em Israel, o amigo. Ganhou roupas, ganhou pasta, ganhou lápis de cor. E, no dia seguinte, Israel chegou de banho tomado, barba feita, roupa limpa. Igualzinho ao Israel que havia avistado no olho da professora. Trazia até umas pupilas novas, enormes, em forma de facho. E um sorriso também recém-inventado. Entrou na sala onde a professora pintava no chão e ela começou a chorar. E as lágrimas da professora, tal qual um vagalhão, terminaram de lavar a imagem acossada, ferida, flagelada de Israel.
Israel, capturado pelo olhar da professora, nunca mais o abandonou. Vive hoje nesse olhar em formato de sala de aula, cercado por 31 pares de olhos de infância que lhe contam histórias, puxam a mão e lhe ensinam palavras novas. Refletido por esses olhos, Israel passou a refletir todos eles. E a professora, que andava deprimida e de mal com a vida, descobriu-se bela, importante, nos olhos de Israel. E as crianças, que têm na escola um intervalo entre a violência e a fome, descobriram-se livres de todos os destinos traçados nos olhos de Israel.
Israel, não importa se alguém não gosta de você. O que importa é que você siga a vida, aconselha Jeferson, de oito anos. Israel, não faz mal que tu sejas grande e um pouco doente, tu podes fazer tudo o que tu imaginares, promete Greice, de nove. Israel, se alguém te atirar uma pedra eu vou chamar o Vandinho, porque todo mundo tem medo do Vandinho, tranquiliza Lucas, nove. Israel, tu me botas na garupa no recreio?
E foi assim que o olhar escorreu pela escola e amoleceu as ruas de pedra.
Israel, depois que se descobriu no olhar da professora, ganhou o respeito da vila, a admiração do pai. Vai ganhar uma vaga oficial na escola. Já consegue escreveu o "P" de professora. E ninguém mais lhe atira pedras. A professora, depois que se descobriu no olhar de Israel, ri sozinha e chora à toa. Parou de reclamar da vida e as aulas viraram uma cantoria. A redenção de Israel foi a revolução da professora.
Em 7 de Setembro, Israel desfilou. Pintado de verde-amarelo, aplaudido de pé pela Vila Pedra.
Referencia: Eliane Brum em "A vida que ninguém vê". Arquipélago Editorial. Porto Alegre, 2006. 208 p.
Eliane Brum nasceu em Ijuí (RS), em 1966. Como repórter, ganhou mais de 40 prêmios no Brasil e no exterior. É autora dos livros de reportagem Coluna Prestes - O avesso da lenda e O olho da rua, do romance Uma Duas e de A menina quebrada, que reúne suas colunas de opinião. Como documentarista, codirigiu o premiado Uma história severina e Gretchen filme estrada. Trabalhou 11 anos no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e dez na revista Época, em São Paulo. Desde 2010, atua como jornalista freelance, dedicando-se a livros de reportagem e de ficção, documentários e sua coluna de opinião.
"A vida que ninguém vê é o resultado da busca de uma repórter pela notícia que não estava no jornal. Os textos são reportagens pautadas pelo exercício de um olhar atento aos pequenos acontecimentos, ao que se passa na existência das pessoas desconhecidas."
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O
Teatro que Afeta:
o
Ambiente Escolar como Miniatura da Cidade
Resumo
Este
artigo trata de uma reflexão sobre a experiên-cia com alguns
procedimentos de performance, como o depoimento pessoal, por
exemplo, durante o processo de criação dos espetáculos que
par-ticipei como atriz na Santa Estação Cia de Teatro, grupo de
teatro de Porto Alegre que existe há 10 anos. A partir dessas
experiências construo uma ponte com o trabalho de teatro que
desenvolvo em sala de aula, articulando o teatro no ambiente escolar
e a escola como uma miniatura da cidade.
Palavras-chave:
teatro
- performance -
escola
- ambiente
*Gabriela
Cunha Greco
Abstract
This
article deals with a reflection on the experi-ence with some
procedures of performance, such as a personal testimonial, for
instance, during the creation process of performances that I
partici-pated as an actress at Santa Estação Cia de Teatro
-
Santa Estação Theater Company), a theater group from Porto Alegre which has existed for
10
years. From these experiences I build a bridge with the theater work
I develop in the classroom, joining the theater in the school
environment and
the
school as a miniature city.
Keywords:
theater
- performance - school -
environment
Ao
longo de 10 anos de trabalho ininterrupto como atriz na Santa Estação
Cia de Teatro, grupo de teatro de Porto Alegre, foi possível
descobrir e experimentar outros modos de construção de cena a
partir da criação de pequenas performances individuais. Com temas e
“motes” sugeridos pela diretora Jezebel De Carli, o elenco pode
conhecer, saborear e tocar a cena partindo de um caminho que acabava
por descortinar outro procedi-mento de composição. A partir dessas
experiências tentarei articular aqui uma ponte com o trabalho de
teatro que desenvolvo em sala de aula, ao perceber o ambiente escolar
como uma miniatura da cidade.
No
último espetáculo do grupo, Hotel Fuck: Num dia quente a maionese
pode te matar, trabalhamos com o “depoimento pessoal”, que foi
jogado para a cena. Sempre nos utilizamos desse procedimento no
pro-cesso de ensaio, como visitas à infância, memórias relatadas,
histórias que viravam improvisações e cenas, mas não dessa forma,
onde um depoimento virou texto, virou dramaturgia, virou persona.
A
atriz e performer Eleonora Fabião nos traz em seu texto Performance
e Teatro que o depoimento pes-soal é uma expressão que nasce no
grupo Teatro da Vertigem, que a atriz Mariana Lima no artigo “O que
Faze - mos na Sala de Ensaio”, esclarece como sendo “sua
colocação como ser humano, como cidadão, como artista. É deixar
que sua experiência vire arte, seja manipulada”. (Fabião, 2008:
242).
Fabião
neste mesmo texto nos aponta que “um performer não apenas coloca
propositalmente pedras em seu sapato, mas usa sapatos de pedra para
que outros fluxos e outras maneiras de percepção e relação
pos-sam circular.” (Fabião, 2008: 243).
No
cruzamento entre o teatro e a performance, Fabião verifica
contribuições que uma linguagem ofer-ece a outra, tais como:
ampliação de pesquisas corporais e investimento na dramaturgia do
corpo, ampliação de repertório de métodos composicionais e
investimento na dramaturgia do ator, investigação sobre o diálogo
entre gêneros híbridos, discussão de conceitos, aprofundamento de
debates e práticas voltadas para a política de identidade,
investigação específica da dramaturgia do espectador.
O
ator/performer sente na pele, na jugular, na garganta e na emoção,
que o ser/pessoa/humano está ali exposto, corte exposto, fratura
exposta no corpo, no olho, na alma, na energia e na aura. O ser que é
está junto com a figura/personagem/persona que o esconde. É como se
boneco e manipulador fossem um só e de repente o boneco se vira para
o manipulador e diz: agora te vira, é contigo!
Essas
experiências trazem para o ator a responsabilidade de ser co-autor
do trabalho composto e nesse movimento de colaboração na revelação
de si, o espetáculo/obra/performance ganha em vida e potência pois
a entrega inevitavelmente torna-se outra. Há um envolvimento do ator
ao dizer um texto que na verdade não é de outro, é seu, de um
momento da sua vida misturado à figura que carrega. O desnudamento
então fortalece a pa-lavra a ser dita, carregada de uma verdade
real, nesse teatro do real, onde não se tem nada além de si mesmo.
Essas
práticas de transmutar o depoimento pessoal em cena, de tocar nas
experiências e memórias dos atores nos faz refletir: Como a
performance vêm contribuindo para essas alterações dentro dos
processos criati-vos, na forma de compor as cenas e no modo de
concretizar a encenação?
E
como esses procedimentos são possíveis de serem vivenciados também
no teatro que se faz na escola? Se percebermos o ambiente escolar
como um pedaço da cidade, uma micro sociedade com seus fluxos,
um
mosaico cultural, uma rede de conexões de vidas, um lugar de
encontro e de convívio pulsante, podemos refletir sobre como o
teatro pode acontecer nesse ambiente. De que modo a
presença/ausência, a memória, a energia, a alegria, o jogo, o
prazer e a potência humana podem emergir? O que impede e bloqueia
essa explosão de vida em arte? Como a arte e o teatro podem explodir
e contagiar a vida das pessoas que ali habitam? Como causar esse
contágio? São questões que tanto quanto artistas como enquanto
educadores nos acompanham.
Se
enxergarmos a escola simplesmente como um espaço de encontro, fluxos
e convívio e pensarmos na ideia dessa micro-sociedade, podemos a
partir do macro espaço, analisarmos os fenômenos que nos cercam e
que de algum modo podem estar causando ruídos e interferências
nessa relação entre a vida dentro e a vida fora da escola, na rua,
no bairro, na cidade.
Para
isso apresento algumas observações sobre o artigo de André
Carreira “Ambiente, fluxo e drama-turgia da cidade” onde o autor
reflete sobre a cidade e as performances que nela hoje eclodem.
Carreira
(2009, pág.2) nos mostra que a cidade tal qual a conhecemos não é
uma, mas “inúmeras cidades” e que são definidas pelo
“repertório de usos dos habitantes”, seus percursos, seus
caminhos possíveis. Po-demos imaginar como se todos aqueles cabos,
fios e canos escondidos debaixo ou em cima do concreto, que se
conectam em rede e geram a eletricidade, assim como os meios de
comunicação, a água, o fluxo do esgoto, a fibra ótica e a energia
emergissem, estivessem a olho nu, sendo expostos. Porque “tudo que
ocorre na cidade cria imediatamente uma rede de contatos e de
comunicação que vai definir os sentidos do acontecimento”. Essa
“construção
do simbólico se dá mediante o registro de vidas particulares”.
A
“silhueta da cidade” (2009, 2) da qual fala Carreira, vai trazer
a ideia de uma dramaturgia possível de dia-logar com o acontecimento
cênico que intensifica a teatralidade já aparente no cotidiano da
rua, mesmo que por vezes num diálogo nada amistoso o que vai gerar a
noção de um teatro de invasão. Na rua, o
passante/habi-tante/transeunte/cidadão nada mais é do que
fabricante/produtor de teatralidade.
Desse
modo, aquilo que reconhecemos como cotidiano passa a ser reorganizado
e revisto pelo teatro que invade o palco, que é a própria cidade.
Nessa invasão, nessa ocupação, nesse instalar-se, repentinamente,
quebrando o ritmo e o fluxo já estabelecido e instaurado como regra
do cotidiano, o teatro se apresenta como uma ruptura daquilo em que
nos habituamos. É como se um cabo se rompesse, um fio se
desencapasse, um cano estourasse, como se houvesse uma explosão, só
que de imagens e signos. Algo se corta, alterando esse fluxo,
alterando a urgência dos tempos, suas velocidades e ritmos.
Faz
necessário então relacionar aquilo que, dentro dessa perspectiva,
Jorge Dubatti vai apontar como sendo a base do teatro: um convite ao
convívio.
-
nesse momento de invasão na rua e mudança do fluxo da cidade que o teatro surge como um chamado para um foco determinado, para algo que acontece. Atentos e concentrados, os habitantes ao redor se tornam testemunhas em comum, comungam nesse alerta para um olhar coletivo, um lembrar-se que estamos todos aqui muito próximos, nesse mesmo corre-corre, nessa mesma rotina entediante nossa de cada dia, nessa mesma histeria barulhenta e caótica. Ou não, todos num mesmo recanto vazio, escuro e silencioso, e que por alguns instantes somos convidados a juntos vermos algo estranho e surpreendente ali acontecer. No momento que algo interfere num espaço, onde fica evidente a relação de poder, a tensão e a proposta desse acontecimen-to adquirem ainda outra força, a força política.
Em
um exercício realizado “em aula” participei de uma experiência
performativa numa das ruas de Porto Alegre enquanto aluna especial do
Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da UFRGS. A ação,
pro-posta pela mestranda Claudia Dithe, consistia em ocuparmos a
faixa de segurança e nela permanecer o tempo que fosse possível e
suportável. Naquele instante, cara a cara com os motoristas que não
sabiam como agir, in-decisos e perplexos, sentia o corpo todo tremer,
tal o medo de um possível atropelamento, o que não seria nada
improvável nos tempos em que vivemos. Na relação e no contato com
o olhar do outro pude perceber o quanto o local do trânsito é
permeado dessa relação de poder. E enquanto aguardava o que poderia
acontecer naqueles minutos de tensão, me questionava sobre a
humanidade, o quanto ainda confiava nela. O carro/a máquina/a
velocidade versus o corpo imóvel/ o humano/ a vida.
O
motorista motorizado versus o pedestre a pé. Até que ponto um
exerce força e poder sobre o outro? O que anda apressado estará
também em processo de produção em contraponto ao que dirige à
deriva. Então melhor seria apontar o confronto entre o que produz,
trabalha, versus o que provoca e joga. Um se torna mais importante,
com mais valor, com mais espaço do que o outro?
Qual
o espaço da cidade para o corpo sem a máquina? O teatro e a
performance, nada mais são do que a reunião de corpos num espaço.
Mas que corpo é esse? Qual o lugar do corpo? O corpo tem um lugar?
Nesse sentido é que a arte na rua é vista como uma afronta, uma
transgressão, ou como algo “desorganizador” do lugar que não
lhe pertence, onde ela não pode estar.
Sobre
esse corpo potente que performa volto a Fabião, que de forma muito
esclarecedora nos traz a ideia de um corpo que não é compreendido
como forma,
“Um
corpo tem o poder de afetar e ser afetado – esta capacidade
determinante também define as particularidades do corpo: o quê ele
afeta e como afeta, e pelo quê ele é afetado e como é afetado.
Então, Espinosa não define corpo por sua forma ou função, como
dito anteriormente, nem como sub-stância ou sujeito. Corpos são
vias, meios. Essas vias e meios são as maneiras como o corpo é
capaz de afetar e de ser afetado. O corpo é definido pelos afetos
que é capaz de gerar, gerir, receber e trocar. Espinosa propõe que
um corpo não é separável de suas relações com o mundo posto que
é exatamente uma entidade relacional. O corpo espinosiano não está,
e nunca estará, completamente formado, pois que é permanentemente
informado pelo mundo, ou, parte de mundo que é. Inacabado, ou ainda,
ina-cabável, provisório, parcial, participante – está,
incessantemente, não apenas se transformando, mas sendo gerado.(...)
nos tornamos potência-corpo antes mesmo de corpos sermos, pois que
“corpo” não “é”. O mundo se torna potência-corpo antes
mesmo de corpo ser, pois que “corpo” não “é”.” (Fabião,
2008:238)
A
ação teatral ou performativa na rua, conforme Carreira (2009) vai
ressignificar o ambiente, “modi-ficar as percepções dos
fragmentos da cidade” através do olhar daquele que vê e
identifica o corpo, a poesia, a metáfora, a imagem, o jogo, o
brinquedo fora do lugar. O “olhar do usuário que recorda e edita
um quadro, situa o espetacular dentro do fluxo do cotidiano e
redimensiona tanto a cena como o próprio dia-a-dia”. A cena
ficcional roça com o real criando o espaço híbrido.
“A
paisagem urbana pode imprimir valores, normatizar e influenciar
comportamentos, legitimizar e naturalizar desigualdades, bem como
exprimir resistências” (...) Essa dilatação não é mais que
conse-quência da dramaturgia da cidade operando no tecido da cena.”
(Carreira, 2009:4)
Espaços
marginais só os deixam de ser à medida que ocupados, utilizados,
percorridos e habitados. Pensemos nas “cracolândias”, nas praças
e parques abandonados, nas ruas mal iluminadas, nos territórios
públicos cercados ou que viraram estacionamentos, nos prédios e
teatros sucateados. Esses territórios, que pertenciam, mas não
pertencem mais a população em geral, estão cheios nas nossas
cidades. Haja vista a quantidade de movimentos decorrentes dessa
desocupação e que vêm gerando projetos “ocupa isso” ou “ocupa
aquilo”, nas grandes metrópoles do país.
O
que pertence a quem? Quando o autor declara que é “a definição
dos percursos que estabelece a iden-tificação das referências tais
como os limites e as zonas e, consequentemente, ajudam a definir os
territórios de pertencimento”, ele está pintando o cenário atual
das nossas cidades brasileiras, que é hoje desenhada com limites de
segurança e circulação oriundas de uma violência que explode nas
ruas.
Então
mesmo que esses espaços públicos pertençam ao público, este
talvez não esteja mais lá, pois o medo e a insegurança permeiam e
definem seu andar e sua mobilidade passa cada vez mais a se
restringir aos ambientes considerados seguros.
Aqui
volto então a questão inicial deste artigo que é pensar a escola
com essas mesmas características, como uma miniatura da cidade, um
cenário, uma maquete, onde os corpos não tem lugar, espaços são
ocupa-dos, existem os fluxos precisos, um trânsito acelerado, regras
de mobilidade, relações de poder entre o que vê e o que é visto,
e a arte e o teatro como essa intervenção que rompe, quebra e
desestabiliza o cotidiano.
Nesse
sentido as contribuições de Fabião (2008) e de Carreira (2009),
entre tantos outros autores que tem se debruçado ao estudo da
performance e das artes performativas, podem nos apontar um caminho
para a transformação do teatro que fazemos hoje na escola. Nessa
escola de hoje cercada de diversidade num tempo cercado de aparato
tecnológico, numa velocidade desenfreada em que é preciso parar
para ver e contemplar, saindo do estado de letargia que afeta nossos
estudantes.
Escola
nenhuma, com raras exceções, está ou esteve preparada para
instalar o teatro em suas acomoda-ções. Não há lugar para o
teatro, tal qual o conhecemos na sua forma mais tradicional. Nem o
pátio, nem a sala de aula, nem os corredores estão lá para acolher
a força daquelas pessoas que querem brincar com Baco, quando
descobrem que desejam. Essa descoberta é lenta. As pessoas, as
outras, também não sabem se querem acolher o tal Dionísio.
Desconhecem do que se trata, quem ele é, de onde veio. E como
tememos o desconhe-cido, a reação de resistência e repulsa é
natural. Faz-se necessário então, dar a conhecer, à todos/as.
Cavando espaços, ocupando territórios, seduzindo, conquistando,
chamando ao encontro, ao convívio, convidando a olhar, porque sim, o
prazer de olhar ainda não perdemos. Guénoun vai nos explicar
porque:
“As
representações respondem a uma necessidade, na medida em que sua
ocorrência está inscrita na natureza dos homens. Mas esta
necessidade de saída, se divide: em uma tendência a produzir
repre-sentações e uma tendência a se comprazer com isto. Ora, este
prazer é um prazer da visão: Aristóte-les o repete à exaustão
(...) temos prazer em olhar as imagens mais apuradas das coisas cuja
visão nos
-
penosa na realidade. Esta dualidade recorta, no geral, nossa distinção entre “fazer teatro” e “ir ao teatro”, entre o teatro que se pratica e aquele que se vê. (2004, p.19)
Defendo
aqui uma escola que seja invadida e ocupada por esse prazer de ver,
de fazer. Por aquilo que desorganize, rompa com os fluxos para o
despertar de uma consciência, afetando o sensível não só dos que
atuam, mas daqueles que observam aquilo que acontece num lugar nada
preparado para tal. Que seja o lugar do afeto, do contato, do
conhecimento, do riso, da brincadeira e onde possamos dançar “se
não estamos todos perdidos”,
como disse Pina Bausch.
Evidentemente
que não estamos na Grécia, nossa gente é outra, nosso tempo
também, nosso olhar está embaçado, nossos prazeres foram afetados.
Tempos e espaços múltiplos. Anestesiados ou superconectados,
o
fato é que vivemos em uma sociedade que Bauman considera líquida,
tanto no que diz respeito às relações como no que diz respeito ao
“modus operandi” de cada um. O líquido como oposto a tudo que é
sólido, é aquilo que escoa, escapa, escorre, desliza e evapora.
O
autor de Vida Líquida desenha uma sociedade que foi construída,
moldada e conduzida a um tipo de comportamento, como se o/a cidadão/ã
não fosse capaz de encontrar planos de fuga e válvulas de escape.
Fosse um ser inerte e incapaz de decidir não fazer parte disso. A
vida líquida é “uma vida precária” porque somos nós mesmos
nossos vigilantes para não sermos pegos tirando uma soneca. As
incertezas e o medo de ficar por fora ou de fora dos acontecimentos e
daquilo que pede mudança, virou o nosso maior tormento. Nesse
sentido a globalização e a internet contribuem para reforçar essa
prática, pois vemos a cada segundo o quanto as pessoas estão em
vários lugares ao mesmo tempo, se movendo de forma mais veloz que
nós, produzindo mais e gerando mais resultados que nós e o quanto
isso vai causando um mal estar e uma sensação de letargia e
lentidão.
A
tecnologia vai servir a essa liquidez, é assustador pensar que sim
as pessoas precisam adquirir um novo aparato (seja ipod, ipad,
andróide) para serem mais rápidas e sentirem-se parte de um grupo
seleto de vencedores. Como consumidores somos consumidos de forma
rápida e voraz. No entanto é evidente o quanto a tecnologia está a
serviço da arte e da comunicação, e pode sim contribuir e muito
para novas experiências e práticas artísticas. Minhas inquietações
não se tratam de demonizá-la.
-
fato que vivemos relações, onde simplesmente se descarta a máquina que não funciona mais, que demonstra defeito, falha, erro. Deleta-se o outro como deleta-se um arquivo baixado com vírus. “Do princípio ao fim, a ênfase recai em esquecer, apagar, desistir e substituir.” (Bauman, 2009, p.9). Se aperta o reiniciar, e depois das atualizações feitas, se reinicia tudo de novo.
O
problema é onde jogar o outro fora, como livrar-se do lixo, daquilo
que não funciona e que estragou. Segue-se a lógica que nada tem
conserto, onde não se faz mais o mínimo esforço para se
consertarem as coisas, pois elas são todas substituíveis
rapidamente, ou não se encontram mais as peças para fazer as
devidas repara-ções. Afinal há um mercado infindável de ofertas
do novo, daquilo que é mais eficaz e com novos dispositivos
modernos. O sujeito/coisa/objeto passa a ser ninguém, não agrega
mais valor, tornou-se obsoleto e precisa ser descartado. É só
passar o rolo compressor por cima, ou o carro mesmo.
Nesse
panorama trágico e desértico, homens e mulheres, alunos e alunas,
pais e professores, artistas e público travam uma luta diária em
busca de um reconhecimento ou gratificação, tornando-se reféns de
uma “aquiescência à desorientação, imunidade à vertigem,
adaptação ao estado de tontura, tolerância com a falta de
itinerário e direção e com a duração indefinida da viagem.”
(Bauman, p.10)
A
arte e a educação não são salvadoras de nada, no entanto, de
alguma forma podem contribuir como trampolim para a fuga desse
cenário. Alguns poucos que conseguirem saltar, poderão se dar ao
luxo de parar por alguns instantes e contemplar, observar, ouvir,
silenciar, perceber, se olhar e ver o outro como seu compan-heiro de
viagem, que convive, que faz parte da mesma espécie e não é algo a
ser vencido ou consumido e sim visto, ouvido e tocado.
O
aluno/ator/performer ao falar de si poderá contribuir para essa
viagem, ao atuar no processo de liga-ção entre o real e o fictício
visível, entre a rotina da vida e a vida em suspensão.
Como
um eixo ou um fio condutor, o teatro, dentro e fora da escola tem a
possibilidade de conectar esses dois extremos, essas duas dimensões.
Desse modo poderá conduzir à plataforma em alto mar, que leva
alunos/per-formers e público a se molhar, de novo.
Referências
BAUMAN,
Zygmund. Vida Líquida. 2. ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
CARREIRA,
André. Ambiente, fluxo e dramaturgias da cidade: materiais do teatro
de invasão. Percevejo on-line. Periódico do Programa de
Pós-graduação em Artes Cênicas- Unirio. janeiro-junho/2009
FABIÃO,
Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena
contemporânea. Sala Preta – revista de artes cênicas, São Paulo,
n.8, 2008, p.235-246.
GUÉNOUN,
Denis. O teatro é necessário? São Paulo: Perspectiva, 2004.
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DA ARTE DOCÊNCIA E INQUIETAÇÕES
CONTEMPORÂNEAS PARA A PESQUISA EM EDUCAÇÃO
CONTEMPORÂNEAS PARA A PESQUISA EM EDUCAÇÃO
Luciana
Gruppelli Loponte
E
se os países sem mar se encontrassem? E se o Monte Everest, marco
geográfico da maior altitude do mundo, e o Mar Morto, maior
depressão, se aproximassem? E se o pequeno país Mônaco
encontrasse a Rússia, um país de grandes dimensões? Paisagens
inventadas, geografias fictícias, cartografias fantasiosas que nos
lançam à pergunta: e
se fosse possível?
Essa indagação é uma das principais matérias-primas de muitos
artistas e das criações de Mayana Redin, que nos instiga a pensar
nesses encontros improváveis através de seus desenhos1.
Para um olhar desavisado, cuja expectativa de arte busque
representações realistas, narrativas visuais previsíveis e
facilmente reconhecíveis, desenhos aparentemente tão simples como
esses podem gerar insatisfação e até certo desprezo. No entanto,
convoco aqui o descrente e cético leitor a ir além das
resistências fáceis e imediatas diante do que foge ao esperado ou
ao que já foi escrutinado por suas referências tão arraigadas.
Produções artísticas como as de Mayana Redin, vinculadas ao que
pode se chamar hoje de arte contemporânea, exigem-nos outra atitude
de olhar, uma postura artística diferenciada não só em relação
às artes, como também em relação à existência. É desse lugar
e a partir dessa atitude diante da arte e de tudo que ela nos faz
indagar que trato neste texto de uma relação quase improvável
entre arte e docência. Essa relação se estabelece além das
discussões disciplinares sobre como as artes poderiam ser ensinadas
na escola ou além de uma formação docente específica em artes.
Pensar
a docência, em especial a docência na educação básica, e uma
formação aliada às artes, estética, e as inquietações advindas
daí, são temáticas que têm ocupado meus interesses de pesquisa
nos últimos anos; em especial, com um foco nas provocações que as
artes visuais
-
O presente texto vincula-se à pesquisa “Arte contemporânea e formação estética para a docência” com financiamento do CNPq.
-
Doutora em Educação e professora adjunta da Faculdade de Educação da UFRGS. Atua como professora do Programa de Pós-graduação em Educação na linha de pesquisa Ética, alteridade e linguagem na educação e é vinculada ao grupo de pesquisa Nemes (Núcleo de Estudos em Mídia, Educação e Subjetividade) e ao Gepaec (Grupo de Pesquisa em Arte, Educação e Cultura).
-
A série de desenhos Geografia dos encontros (2010/2011), da artista Mayana Redin, foi apresentada na VIII Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre de 10 de setembro a 15 de novembro de 2011, cujo tema foi Ensaios de Geopoética. Informações sobre a exposição disponíveis em: <http://bienalmercosul.siteprofissional.com>.
contemporâneas
podem trazer para nossos modos de pensar e problematizar a docência,
em qualquer nível de ensino ou área de conhecimento. Nesse sentido,
o principal objetivo deste artigo é apresentar considerações em
torno dessas temáticas a partir de discussões levantadas na
pesquisa Arte
e estética da formação docente (concluída
em 2010) e
Arte contemporânea e formação estética para a docência (em
andamento)2.
Tais pesquisam possibilitam abrir espaços para a arte e a
criação
na docência, que também passa a significar o indagar-se sobre os
modos de criar espaços para a arte e a criação na formação
docente, assumindo a dimensão estética (ou uma determinada dimensão
estética) como fundamental para a formação docente em qualquer
área, não apenas em arte. Além de ensaiar possibilidades em torno
dessas temáticas, em especial, a partir de pesquisas já realizadas,
o artigo pretende contribuir para processos e políticas de formação
docente continuada em vários níveis de ensino, alimentando novas
problemáticas para a pesquisa em educação. Para esta discussão,
os principais interlocutores teóricos são os filósofos Michel
Foucault e Friedrich Nietzsche, além de outros parceiros artísticos
e filosóficos que ajudam a dar densidade às questões levantadas.
TENSÕES
ENTRE ARTE E FORMAÇÃO PARA A DOCÊNCIA
Em
pesquisa realizada em 2005, perguntava-me a respeito das
possibilidades da constituição de uma docência
artista,
que seria constituída no entre-espaço da produção de escritas de
si e de relações de amizade no âmbito de um processo de formação
docente, realizado com um grupo de professoras de arte de Santa Cruz
do Sul, durante mais de cinco anos3.
Na ocasião da pesquisa, entrava em jogo também a busca por espaços
de resistência em relação aos discursos de gênero e poder que
constituíam a formação das professoras e que de algum modo traziam
à tona um paradoxo:
[...]
a hipervisibilidade
das mulheres na docência em arte, sujeita a um discurso “pedagógico”
e prescritivo, por um lado; e, por outro, um discurso que conforma a
arte a um olhar predominantemente masculino; e a invisibilidade
profissional das mulheres docentes como artistas de seu próprio
trabalho. (LOPONTE, 2005, p. 41).
-
Ambas pesquisas financiadas pelo Edital Universal do CNPq (2007-2009; 2010-2012).
-
O principal objetivo da pesquisa pode ser traduzido dessa forma: “[...] partindo do pressuposto de que a formação docente em arte (professoras de educação infantil, ensino fundamental e médio) é bastante precária, e que as relações de gênero estão implicadas na definição do discurso sobre arte e na constituição da docente em arte, pergunto pela possibilidade da constituição de uma ‘docência artista’, constituída através da escrita de si e relações de amizade, como formas possíveis de resistência, de subversão aos poderes subjetivantes (principalmente que envolvem relações de poder e gênero), a partir da análise do trabalho de formação docente em arte, que vem sendo desenvolvido há cinco anos com um grupo de professoras na Universidade de Santa Cruz do Sul (Santa Cruz do Sul, RS).” (LOPONTE, 2005, p. 9).
A
ideia de uma docência
artista
persegue um modo de ser docente, de uma ética docente contaminada
com uma atitude estética. Vários conceitos imbricam-se e
reinventam-se nos bastidores dessa docência: estética da
existência, artes de si, ascese, askésis,
etopoética, ética e política, ética e estética, cuidado de si e
dos outros, inquietudes de si, vida como obra de arte. Tais conceitos
emergem principalmente da produção teórica de Michel Foucault, em
especial nos seus últimos escritos, além da contaminação do
pensamento de Friedrich Nietzsche que se avizinhava durante a
pesquisa que realizava na época. Adjetivar a docência de artista
e não artística
indica mais uma atitude, uma postura, um modo de existência
impregnado pelo pensamento que pode advir da arte, numa tentativa de
responder às indagações de Deleuze a partir da obra de Foucault:
[...]
quais são nossos modos de existência, nossas possibilidades de vida
ou nossos processos de subjetivação; será que temos maneiras de
nos constituirmos como “si”, e, como diria Nietzsche, maneiras
suficientemente “artistas”, para além do saber e do poder?
(DELEUZE, 2008, p. 124).
Uma
docência artista implica determinados conceitos de sujeito e de
formação: não se trata da noção de sujeito estável,
essencialista, passível de ser emancipado e nem de uma formação
cuja finalidade esteja predefinida ou com um ponto de chegada
preestabelecido. Trata-se, sim, de um sujeito cuja formação vai
além das pretensões modernas de estabilidade, conscientização e
acabamento, em direção a uma prática de liberdade ou, ainda, um
permanente “tornar-se aquilo que se é”, cujo fim, felizmente, é
inatingível. Trata-se de uma formação marcada pelas possibilidades
de invenção contínua de si mesmo e não pela descoberta ou
reencontro de um si
que estaria oculto ou de uma consciência a ser desvelada.
Pressupostos tais como esses não pretendem, no entanto, deixar-nos
cair em um suposto vazio relativista que paralisaria a nossa
capacidade de agir e de pensar sobre os processos de formação
docente. Assumirmos as incertezas e a nossa descrença sobre as
verdades únicas não indica, diferente do que possa parecer a algum
leitor desatento, eximir-nos do compromisso e da responsabilidade de
pensar e problematizar modos de constituir a docência, e buscar
modos mais abertos e flexíveis – mais artistas
– diante da tarefa cada vez mais complexa que é educar em tempos
contemporâneos. Seríamos capazes de constituir “estéticas da
existência” ou “estéticas da docência”, marcadamente
plurais, contingentes, inconformadas?4
-
A esse respeito, são importantes as considerações de Guilherme Castelo Branco referentes às discussões levantadas por Foucault: “Uma coisa podemos afirmar: toda estética da existência tem vínculo estreito com o seu tempo, com seu presente histórico, em muitos casos experiências de inconformidade com as formas de vida comumente aceitas ou controladas, o que faria delas processos históricos constantes e sem fim, o que pressuporia descontinuidades e ultrapassagens imanentes aos processos não lineares das vidas humanas, pessoais, sociais e históricas.” (BRANCO, 2009, p. 145).
A
potência de uma docência artista nos indica um processo de abertura
para pensarmos além do mesmo a respeito da relação entre arte e
docência, ou sobre os processos de formação docente, quaisquer que
sejam. Na palavra docência
há um germe de gerúndio, de algo acontecendo, de algo se fazendo
continuamente. E é mesmo a partir dessa matéria, flexível e
maleável, em contínua criação e recriação, que se constitui uma
docência imbuída de uma atitude artista consigo mesma e com o
mundo.
Se,
em pesquisa concluída em 2005, pensava-se em uma docência artista,
tendo em foco professoras de arte, com o decorrer do tempo e com o
amadurecimento dessa temática, viu-se a necessidade de ampliar a
discussão para a formação docente em qualquer área, questões
instigadas pela conversação teórica empreendida com autores como
Michel Foucault e Friedrich Nietzsche e as discussões em torno da
“arte da existência”, da “vida como obra de arte”, da
relação mais estreita entre vida e arte, da arte como vontade de
criação, como potência para a vida (FOUCAULT, 2004; MACHADO, 2002;
MOSÉ, 2005).
Além
disso, o contato direto com alunos oriundos de licenciaturas
diversas, como professora da área de didática5,
proporcionou-me a expansão dos meus interesses de formação e novas
indagações. Nas aulas em que se esperava certa instrumentalização
pedagógica que os gabaritasse como bons professores, eu provocava
esses futuros docentes, em geral pouco flexíveis em seus
planejamentos e nos modos de pensar seu trabalho: um aluno de
matemática pode pensar suas aulas a partir de obras como As
meninas,
de Velásquez? O que a obra de um artista como Brennand pode ensinar
sobre pigmentos e materiais a alunos de química? O que uma exposição
de arte contemporânea tal como a Bienal do Mercosul pode dizer a
licenciandos que não têm formação em arte? Um aluno de física
pode traduzir sua concepção de mundo através de um vídeo
artístico?6
A
continuidade das pesquisas sobre arte
e estética da docência
tem reforçado a crença da potencialidade da dimensão estética na
formação continuada de docentes em qualquer área de conhecimento,
temática que continuo desenvolvendo na pesquisa em curso, da qual
trago alguns elementos para a discussão neste texto. No entanto
surge a necessidade de aprimorar a abordagem sobre formação
estética docente a partir de um levantamento sobre as pesquisas já
realizadas sobre a temática, além de recolher dados empíricos mais
abrangentes sobre a formação estética de alunos de licenciatura de
várias áreas, que possam sustentar e subsidiar ações futuras de
formação no
-
Desde 2007, atuo em disciplinas de didática, atendendo alunos de dezessete licenciaturas da UFRGS. A partir de 2010, passei a atuar também como supervisora de estágio do curso de Licenciatura em Artes Visuais.
-
A respeito dessas experiências, ver Loponte (2013).
âmbito
da Faculdade de Educação da UFRGS7.
Embora se perceba um aumento de investigações a respeito de
formação estética no campo da pesquisa educacional, as concepções
a respeito variam radicalmente. A perspectiva de formação que
busco, ancorada nos parceiros filosóficos já citados, entende arte
e estética além de um campo disciplinar específico, ligado a
determinadas teorias sobre arte, cujo foco é delimitado, em parte,
por questões de gosto, crítica de arte, domínio de técnicas
artísticas ou modos de acesso e leitura, para ficarmos em alguns
exemplos. Indo além, e sem excluir de todo essas abordagens, penso
que possamos extrair da arte, e das experiências estéticas a partir
dela, mais do que isso: novas atitudes diante de si mesmo e da vida,
outros modos de condução de si mesmo. Uma educação que contemple
e entrelace ética e estética – é a perspectiva defendida por
Hermann (2010):
A
experiência estética – na medida em que abala nossas convicções
comuns e suspende a normalidade das certezas justificadas – é
reivindicada para uma ampliação da compreensão ética da educação,
um modo de trazer novos elementos para o juízo moral, como
alternativa à reflexão ética exclusivamente racional. Tais
experiências de liberação da subjetividade cumprem um papel
formativo do eu. (p. 17).
Aliando-me
à autora e ao seu entendimento sobre estética, que vai além da
conceituação clássica de beleza em direção a outra dimensão de
conhecimento e interpretação do mundo, acredito que os processos de
formação docente não podem prescindir da arte e da estética,
reduzindo-se a um pensamento racional e cognitivo em relação aos
modos de ser professor.
Importa
dizer neste artigo, principalmente, o quanto se agregaram, de modo
mais contundente, à problematização sobre a possibilidade de uma
arte
e estética da docência,
as discussões em torno da arte contemporânea (especialmente as
artes visuais) como uma das propulsoras desta formação, tendo como
mote provocações de Nietzsche sobre “o que devemos aprender com
os artistas”8,
ou em outro contexto, “o que a docência pode aprender com as artes
visuais contemporâneas”. Nesse sentido, a arte contemporânea é
vista como uma produção que atualiza, em certa medida, através de
suas proposições e metáforas, conceitos como “estética da
existência”, “vida como obra de arte”, relação entre arte e
vida, arte como potência para a vida, tão caros a filósofos como
Nietzsche e Foucault. A principal aposta deste trabalho é de que a
formação docente, em qualquer área de conhecimento, pode ser
aprimorada através da ênfase na dimensão estética, entendendo
arte e estética (além de campos disciplinares específicos) como
suas propulsoras. Pretende-se, de algum modo, contribuir para o
debate atual sobre formação docente
-
Ações em curso na pesquisa Arte contemporânea e formação estética para a docência, com previsão de conclusão em 2013.
-
Ver aforismo 299 de A Gaia Ciência (NIETZSCHE, 2001).
(em
qualquer área de conhecimento), tomando a dimensão estética como
aspecto fundamental e não como um simples acessório ou um tintinar
de guizos
nesse processo.
NOTAS
SOBRE ARTE CONTEMPORÂNEA E FORMAÇÃO
O
que pode mesmo ter a ver arte contemporânea com educação ou
formação docente? De que mesmo falamos ao trazer a arte
contemporânea para uma conversa que pode envolver práticas
curriculares, formação docente e inquietações contemporâneas em
torno da educação?
Em
geral, aqueles ligados ao campo chamado de pedagogia
ou ao da pesquisa educacional não dispendem muito do seu tempo para
pensar em arte e, muito menos, sobre as proposições das artes
visuais ditas contemporâneas. Esta seria a tarefa específica apenas
dos intitulados professores de arte ou dos especialistas da área.
Isso que desavisadamente chamamos de arte permanece confinado às
visitas esporádicas em museus e exposições durante viagens, ao
folhear curioso de algum livro de imagens artísticas ou a um olhar
enviesado para qualquer produção que não cumpra as expectativas de
“boas representações” do que chamamos de real. É ainda um
olhar de “missão francesa” (MARTINS, 2011) que configura nosso
olhar para arte e os julgamentos que fazemos diante das produções
que não se encaixam no nosso repertório visual, muitas vezes tão
limitado pela nossa própria experiência escolar.
Presentes
em grandes exposições nas capitais brasileiras e instituições
culturais das mais diversas em várias cidades, mas também em
lugares públicos, em sites de internet, aberturas de programas de
TV, as produções artísticas contemporâneas estão em várias
partes, nosso olhar cansado percebendo-as ou não. Que deslocamentos
são necessários para que olhar (ou indo mais além, experimentar)
arte contemporânea não nos pareça tão estranho e assustador? As
afirmações a respeito do fim
da arte
não querem dizer de forma reducionista que “agora, infelizmente,
não se faz a verdadeira
arte,
como antigamente”. O que chega ao fim, conforme Danto (2006), é
uma determinada narrativa sobre arte e não o seu tema. Não podemos
exigir que a arte permaneça a mesma, tendo os mesmos ideais e os
mesmos propósitos diante da acelerada transformação da sociedade
contemporânea:
As
próprias perguntas sobre “o que é arte” ou se “isso é arte”
deixam de ter o significado que tinham até então. Versões
essencialistas, institucionalistas, domésticas, pós-históricas –
entre outras – emergem, reforçando essas falsas impressões do fim
da arte ou de que tudo-tanto-faz. Aos poucos, temos tido de aprender
a lidar com o peso do limite, com a força da finitude da nossa
existência e compreensão. Aos poucos, temos tido que aprender que é
justamente essa condição finita
que faz com que proliferem infinitas compreensões – cada uma e
todas elas singulares e plausíveis. Aos poucos, temos tido que
aprender que o plural é coleção infinita de singulares. (PEREIRA;
HERMANN, 2011, p. 262).
As
infinitas compreensões advindas das produções artísticas
desconcertam a estabilidade do que já conhecemos e, sim, têm tudo a
ver com as nossas preocupações singulares. “Isso não tem nada a
ver com a gente, professora”, disse-me um aluno de Licenciatura em
Ciências Sociais, indagado sobre a ida da turma em uma grande
exposição de arte contemporânea da cidade. Sim, eu afirmava,
diante dos olhos incrédulos dos meus alunos, uma exposição como
essa tem tudo a ver com as inquietações humanas e subjetivas que
nos são mais caras e mesmo com nossas preocupações pedagógicas:
“[...] as obras, os experimentos, as proposições de toda sorte,
funcionam como interruptores da percepção, da sensibilidade, do
entendimento; funcionam como um descaminho daquilo que é conhecido”.
(FAVARETTO, 2010, p. 232). Estaremos abertos a esse tipo de
descaminho na nossa formação docente e no pensamento a respeito das
nossas práticas curriculares cotidianas?
Enquanto
o campo da educação parece um pouco impermeável às provocações
das produções artísticas contemporâneas, o inverso não parece
ser verdadeiro, como vemos a partir de algumas proposições
educativas ligadas a exposições de arte contemporânea. Pablo
Helguera, curador pedagógico da VIII Bienal do Mercosul, propõe a
expansão da noção do campo de ação da pedagogia. Parafraseando o
célebre termo consagrado pela crítica de arte Rosalind Krauss
(2008) no artigo Escultura
no campo expandido,
Helguera pensa a ação educativa dessa exposição a partir da ideia
de uma “pedagogia do campo expandido”, ou como um território
constituído por diferentes regiões:
No
campo expandido da pedagogia em arte, a prática da educação não é
mais restrita às suas atividades tradicionais, que são o ensino
(para artistas), conhecimento (para historiadores da arte e
curadores) e interpretação (para o público em geral). A pedagogia
tradicional não reconhece três coisas: primeiro, a realização
criativa do ato de educar; segundo, o fato de que a construção
coletiva de um ambiente artístico, com obras de arte e ideias, é
uma construção coletiva de conhecimento; e, terceiro, o fato de que
o conhecimento sobre arte não termina no conhecimento da obra de
arte, ele é uma ferramenta para compreender o mundo. (HELGUERA,
2011, p. 12).
Há
muitos elementos a reter a partir dessa concepção expandida de
pedagogia e de arte para as nossas preocupações formativas em torno
da docência: o ato de educar é um ato de criação que envolve
conhecimento e flexibilidade diante de alunos, situações
pedagógicas, ambientes escolares, práticas curriculares, em geral
não correspondentes a modelos predefinidos ou qualquer manual; do mesmo
modo que um ambiente artístico é uma construção coletiva de
conhecimento, assim também
-
o ambiente escolar, o que envolve inclusive uma determinada estética que se materializa nas posições ocupadas por professores e alunos, pela concepção de trabalhos escolares, escolhas curriculares e materiais didáticos; e, por último, o conhecimento sobre arte é mais do que um saber delimitado e de interesse de alguns, ele é uma ferramenta para interpretar, conhecer e reinventar o mundo.
-
dessa forma que podemos aprender com as proposições de artistas tais como Arthur Bispo
do
Rosário, Leonilson, Louise Bourgeois, Sophie Calle9
(apenas para citar alguns) mais do que modos de interpretar e
explicar
o sentido de suas obras. Aprendemos com a experiência ímpar e
singular que cada um desses artistas nos oferece: uma atitude
inconformada em relação à vida que é traduzida esteticamente em
seus trabalhos.
A
discussão apresentada até aqui, marcada por novas relações e
tensões entre arte e docência, tem tido desdobramentos em
seminários10,
novas investigações e inquietações para a docência11.
Diante
de uma escola que, muitas vezes, se sente fracassada frente aos
desafios da universalização do ensino, da precariedade de condições
de trabalho, em especial nas escolas públicas brasileiras, além da
insistente desvalorização dos profissionais que se dedicam a esse
trabalho, que postura assumem os docentes? Percorrendo as escolas,
encontramos desde aqueles indiferentes e conformados à situação,
moldando assim as suas práticas, até aqueles que não se deixam
capturar nem pelo papel de vítimas, nem de culpados das mazelas
educacionais, buscando brechas de resistência e criação em seu
trabalho12.
São esses que mais me interessam e é essa a matéria bruta de
pesquisas tais como a de Steffens (2011), Kautzmann (2011), Born
(2012) e Görgen (2012).
-
Sobre os artistas brasileiros Arthur Bispo do Rosário e Leonilson, ver: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/ enciclopédia_ic/index.cfm> e <http://www.projetoleonilson.com.br/site.php>. A respeito das artistas francesas Louise Bourgeois e Sophie Calle, conferir os sites <http://www.artnet.com/artists/louise-bourgeois> e <http://www2. sescsp.org.br/sesc/videobrasil/up/arquivos/200908/20090812_162153_Programa_CuidedeVoce_P.pdf>. Ver também as experiências de artistas como Basbaum (2009) e Floch (2009).
-
Em especial, os seminários avançados oferecidos no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS sob a minha coordenação: Arte contemporânea, formação estética e educação (2011/1) e Arte e experiência estética: potencialidades para a formação (2012/1).
-
Meu bolsista de Iniciação Científica Álvaro Zacarias Alves Vilaverde, aluno da Licenciatura em Artes Visuais, foi vencedor do Prêmio Jovem Pesquisador na área de Ciências Humanas da UFRGS em 2012, com o trabalho Arte, vida e escrita: arte contemporânea e formação estética.
-
Chamo a atenção para as experiências em torno da docência compartilhada, deslocando a concepção e os arranjos das turmas de progressão, realizadas em Porto Alegre (RS). A este respeito, ver Traversini et al. (2012).
Steffens
(2011) procurou repensar as práticas verticalizadas de trabalho com
literatura na escola, propondo uma experiência com uma turma de
Educação de Jovens e Adultos a partir de uma perspectiva literária
que contemple a formação estética dos envolvidos. Uma aula de
leitura na escola pode ser pensada como uma possibilidade de abertura
à formação de subjetividades?
As
indagações de Kautzmann (2011) dirigiram-se à formação docente
para a educação infantil. A pesquisadora propôs a criação de um
grupo sobre formação estética com professoras de educação
infantil de Porto Alegre (RS), com o objetivo de criar um espaço de
experimentação a partir de práticas de fotografar e olhar
fotografias, em especial de artistas contemporâneos, que
favorecessem o exercício de ver e de pensar acerca de si mesmo, dos
outros e da escola. Buscou-se, dessa forma, favorecer o estranhamento
e a mobilização das docentes em relação à criação de novos
modos de pensar e atuar na educação infantil.
Uma
investigação como espaço de formação também foi o mote da
pesquisa de Görgen (2012), ao propor “encontros com a artescrita”
a alunas de um curso de formação para o magistério em nível médio
em uma escola de internato do interior do Rio Grande do Sul. O
principal objetivo da pesquisa foi propor um experimento a partir do
uso da escrita de cartas e da arte contemporânea, em oficinas
envolvendo o trabalho de artistas tais como León Ferrari, Mira
Schendel, Elida Tessler e Jorge Macchi, deslocando pensamentos
padronizados em relação à escrita, à escola e aos modos de ser
docente.
Born
(2012) enfrenta a tensão e a aproximação entre a docência na
educação básica e o fazer artístico, a partir da discussão a
respeito do trabalho realizado por professoras artistas participantes
de um coletivo de arte contemporânea, chamado Ponto
de Fuga.
Os fazeres artísticos e pedagógicos imbricam-se no trabalho dessas
professoras-artistas, configurando-se o coletivo artístico como um
espaço de resistência para o exercício do fazer artístico e
também contribuindo para o exercício da docência em arte na
educação básica.
Em
comum nessas pesquisas está a inconformidade com um tipo de formação
que prescinda de uma dimensão estética ou de uma atitude inquieta
em relação ao mundo. Cada uma dessas investigações está
contaminada com uma atitude
artista
diante do que significa pesquisar em educação. Impregnadas de suas
problemáticas específicas, cada pesquisadora busca e reinventa
respostas menos óbvias, menos conformadas, mais estéticas
diante de inquietações pedagógicas cotidianas. Atentas às
provocações contemporâneas do campo das artes, essas investigações
instigam o campo educacional, tão afeito às prescrições e aos
pensamentos circulares, insistindo em perguntar sobre o impensado e o
considerado improvável. Podemos analisar, a partir dessa
perspectiva, nossas práticas curriculares cotidianas, ou ainda
ampliar nossos referenciais sobre o que
está incluído ou excluído do pensamento em torno dos processos
educativos: quem é considerado diferente na escola? Como as
diferenças de corpos, ritmos
de aprendizagem,
saberes e perspectivas de vida são tratados no ambiente escolar? De
que forma reconhecemos esse outro
que chega à escola indagando nossas certezas e nossos currículos
predefinidos? E, enfim: há lugar para a arte e a estética no
pensamento a respeito das questões mais caras à pesquisa
educacional brasileira? Se, em princípio, a arte e a experiência
estética podem ser consideradas frivolidades diante de problemas tão
sérios, podemos incluir aí as discussões de Hermann (2010) sobre a
relação entre estética e ética:
[...]
um olhar mais atento pode indicar o quanto ela (a estética) pode
atuar para ampliar nossa reflexão moral, na medida em que nos
prepara para o estranhamento. [...] Nessa medida, a experiência do
estranho e até mesmo do horror, vivenciada pela experiência
estética, põe em jogo o outro de nós mesmos, numa condição
privilegiada de manejo com a alteridade. (p. 132-133).
Se
formos capazes de pensar a respeito dos problemas educacionais que
nos afligem há tanto tempo e de expandir nosso pensamento
pedagógico, a partir de indagações tão inusitadas e aparentemente
estranhas como as provocadas por artistas como Mayana Redin em suas
paisagens inventadas e cartografias fictícias, talvez também
fiquemos surpresos com as respostas que seremos capazes de produzir.
Voltamos ao início: e
se fosse possível?
REFERÊNCIAS
BASBAUM,
Ricardo. Você gostaria de participar de uma experiência
artística? In: CARO, Marina de. (Org.).
Micropolis
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traduções da arte para a educação. Porto Alegre: Fundação
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-
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a docência e o fazer artístico:
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o fim da arte:
a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo:
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RESUMO
O
presente texto tem como principal objetivo apresentar considerações
em torno de uma formação docente aliada às artes, estética, e as
inquietações advindas daí, em especial com um foco nas provocações
que as artes visuais contemporâneas podem trazer para nossos modos
de pensar e problematizar a docência, em qualquer nível de ensino
ou área de conhecimento. As discussões levantadas no texto emergem
das pesquisas “Arte e estética da formação docente” (concluída
em 2010) e “Arte contemporânea e formação estética para a
docência” (em andamento). Nestes estudos, atualiza-se a questão
sobre a possibilidade de espaços para a arte e a criação na
docência, que também passa a significar o indagar-se sobre “os
modos de criar espaços para a arte e a criação na formação
docente”, assumindo a dimensão estética (ou uma determinada
dimensão estética) como fundamental para a formação docente em
qualquer área, não apenas em arte. Além de ensaiar possibilidades
em torno dessas temáticas, em especial, a partir de pesquisas já
realizadas, o texto pretende contribuir para processos e políticas
de formação docente continuada em vários níveis de ensino. Para
esta discussão, os principais interlocutores teóricos são os
filósofos Michel Foucault e Friederich Nietzsche, além de outros
parceiros artísticos e filosóficos que ajudam a dar mais densidade
às questões levantadas.
Palavras-chaves:
Arte.
Estética. Formação docente. Pesquisa em educação.
ABSTRACT
The
present article has as a main purpose to submit some considerations
of the use of arts and aesthetics in the formation of teachers and
the questions that arise from such combination, specially how the
contemporary visual arts can bring us new ways of thinking the world
and improves the way of teaching nowadays at any level or area of
knowledge. The discussion that the text brings to life, is the result
of the researches “Aesthetics and Art of the Docent’s Formation”
(2010) and “Contemporary Art and Aesthetic Formation for the
Docency”(a work in progress). In these studies, we bring new light
for the range of possibilities and of new spaces for the arts and the
creation on the process of teaching, which also turns into the
arguing “about ways of creating spaces for the arts and the
creation at the same time in the docent’s formation”, assuming an
aesthetic dimension (or a specific one) as fundamental for the
docent’s formation on any given area, not only the arts. Besides
playing around the possibilities of this thematic consistency,
specially from past researches, the present article intends to
contribute for the process and the politics of the continuous
formation of docents at different levels of teaching. For this
discussion we use the arguments of philosophers such as Michel
Foucault and Friederich Nietzsche, beside others artistic and
philosophical partners who will help giving more density to the
questions we want to discuss.
Key
words: Art.
Aesthetics. Docent’s formation. Research. Education.
Recebido
em: fevereiro de 2013.
Aprovado
em: março de 2013.
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